• A liturgia dos fogos na época de Job

  • 2024/09/19
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A liturgia dos fogos na época de Job

  • サマリー

  • Em geral, as notícias que nos chegam da realidade lêem-se como episódios de uma qualquer ficção descontrolada, e depois de nos provocarem alguma indisposição, levam cada um a subscrever e afundar-se nesses canais de inanidades. As pessoas já nem se aferram a um resquício de esperança, simplesmente escavam as suas vidas como buracos, submergem-se nos seus delírios e compulsões. Perdemos o direito à acção, mesmo na sua forma desesperada. As nossas bibliotecas vão florescendo em torno de ruínas, prestando testemunho das muitas realidades que desapareceram para sempre, e, deixando em nós a sensação de em breve a própria realidade poderá desaparecer. Nas livrarias, ao lado dos relatos mais pessimistas temos esses mastigadores de palavras brandas e as suas ficções edulcoradas ou as autobiografias soluçantes e complacentes. Não vivemos sujeitos apenas a uma crise da imaginação, mas a uma fé negativa, a programas que dinamitam o infinito, as forças daquilo que deveria empurrar-nos para outro tempo. Prescindimos desse saber essencial que nos lembrava que somos habitantes de um mundo rigoroso, e que está inscrito em tudo uma ordem. Hoje tudo o que emerge tem de forçar o caminho, tudo o que nasce, nasce de imediato para a guerra, toda a esperança chega-nos aos ouvidos como um cântico de morte. No discurso daqueles que são sensíveis às novas causas, cada uma das suas palavras surge como um milagre de sobrevivência, como se fosse vegetação nascida do betão. Nas raízes da poesia, como nos lembra Borges, “está a épica e a épica é o género poético primordial, narrativo”. “Na épica está o tempo, na épica existe um antes, um enquanto e um depois”, adianta o majestoso fabulista argentino. Mas o homem da imortalidade que se transmite pelo canto da boca de uma geração ao ouvido da seguinte, e deixou-se degradar e submeter ao ciclo constante do consumo e à neurose patrocinada pelos efeitos publicitários, que gerou “uma segunda natureza do homem que o liga, libidinal e agressivamente, à forma da mercadoria”, diz-nos Marcuse. “A necessidade de possuir, consumir, manusear e renovar constantemente bugigangas engenhosas, dispositivos, instrumentos, mecanismos, oferecidos e impostos às pessoas para que usem esses produtos mesmo com risco da sua própria destruição, tornou-se numa necessidade ‘biológica’.” Antes, um sinal do espanto nos homens era a forma como resistiam à literalidade, a alimentar cada apetite mal este se lhe impusesse, havia um sentido de que o gosto se educada, e que em lugar de um fruto qualquer, há possibilidade de afinar a fome e alcançar aqueles amadurecidos ao longo de milénios, com um sabor enriquecido por migrações e regressos. Era outra coisa aquilo que buscávamos, e ainda persistem uns poucos por aí, que resistem a abdicar do tempo que se rege segundo o ritmo e a disponibilidade humana, alguns que se mostram capazes ainda de colher e remontar outras épocas, “esvaziar uma música como um saco (…) ordenhar um vinhedo como uma vaca/ desarvorar vacas como veleiros/ pentear um veleiro como um cometa/ desembarcar cometas como turistas/ enfeitiçar turistas como serpentes (…) depenar uma bandeira como um galo/ apagar um galo como um incêndio/ vogar em incêndios como em oceanos/ ceifar oceanos como searas/ repicar searas como sinos/ esquartejar sinos como cordeiros (…) tripular crepúsculos como navios/ descalçar um navio como um rei/ pendurar reis como auroras/ crucificar auroras como profetas” (Huidobro)… Não faz muito tempo, os homens ainda falavam entre eles uma linguagem de incêndios, tinham um vigor que se alimentava na natureza de forma a transcendê-la. Hoje, somos incapazes de colher uvas nos espinheiros ou figos nos cardos. Mesmo a literatura deixou de se exercer em flagrante delito. A velocidade substitui o tempo enquanto ordem ou efeito que impedia tudo de suceder em simultâneo e, desse modo, encadear algum tipo de nexo narrativo. Somos projectados na inconsciência pelo ruído de todos esses “acontecimentos que não têm o seu próprio lugar no tempo, os acontecimentos que chegaram tarde demais, quando todo o tempo já foi distribuído, dividido, desmontado, e que ficaram em suspenso, não alinhados, flutuando no ar, sem lar, errantes” (Bruno Schulz). Hoje a própria espécie humana perdeu a ligação com a realidade, e deriva em suspenso, impondo as suas ilusões como uma doença que procura paralisar todos os ciclos.

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あらすじ・解説

Em geral, as notícias que nos chegam da realidade lêem-se como episódios de uma qualquer ficção descontrolada, e depois de nos provocarem alguma indisposição, levam cada um a subscrever e afundar-se nesses canais de inanidades. As pessoas já nem se aferram a um resquício de esperança, simplesmente escavam as suas vidas como buracos, submergem-se nos seus delírios e compulsões. Perdemos o direito à acção, mesmo na sua forma desesperada. As nossas bibliotecas vão florescendo em torno de ruínas, prestando testemunho das muitas realidades que desapareceram para sempre, e, deixando em nós a sensação de em breve a própria realidade poderá desaparecer. Nas livrarias, ao lado dos relatos mais pessimistas temos esses mastigadores de palavras brandas e as suas ficções edulcoradas ou as autobiografias soluçantes e complacentes. Não vivemos sujeitos apenas a uma crise da imaginação, mas a uma fé negativa, a programas que dinamitam o infinito, as forças daquilo que deveria empurrar-nos para outro tempo. Prescindimos desse saber essencial que nos lembrava que somos habitantes de um mundo rigoroso, e que está inscrito em tudo uma ordem. Hoje tudo o que emerge tem de forçar o caminho, tudo o que nasce, nasce de imediato para a guerra, toda a esperança chega-nos aos ouvidos como um cântico de morte. No discurso daqueles que são sensíveis às novas causas, cada uma das suas palavras surge como um milagre de sobrevivência, como se fosse vegetação nascida do betão. Nas raízes da poesia, como nos lembra Borges, “está a épica e a épica é o género poético primordial, narrativo”. “Na épica está o tempo, na épica existe um antes, um enquanto e um depois”, adianta o majestoso fabulista argentino. Mas o homem da imortalidade que se transmite pelo canto da boca de uma geração ao ouvido da seguinte, e deixou-se degradar e submeter ao ciclo constante do consumo e à neurose patrocinada pelos efeitos publicitários, que gerou “uma segunda natureza do homem que o liga, libidinal e agressivamente, à forma da mercadoria”, diz-nos Marcuse. “A necessidade de possuir, consumir, manusear e renovar constantemente bugigangas engenhosas, dispositivos, instrumentos, mecanismos, oferecidos e impostos às pessoas para que usem esses produtos mesmo com risco da sua própria destruição, tornou-se numa necessidade ‘biológica’.” Antes, um sinal do espanto nos homens era a forma como resistiam à literalidade, a alimentar cada apetite mal este se lhe impusesse, havia um sentido de que o gosto se educada, e que em lugar de um fruto qualquer, há possibilidade de afinar a fome e alcançar aqueles amadurecidos ao longo de milénios, com um sabor enriquecido por migrações e regressos. Era outra coisa aquilo que buscávamos, e ainda persistem uns poucos por aí, que resistem a abdicar do tempo que se rege segundo o ritmo e a disponibilidade humana, alguns que se mostram capazes ainda de colher e remontar outras épocas, “esvaziar uma música como um saco (…) ordenhar um vinhedo como uma vaca/ desarvorar vacas como veleiros/ pentear um veleiro como um cometa/ desembarcar cometas como turistas/ enfeitiçar turistas como serpentes (…) depenar uma bandeira como um galo/ apagar um galo como um incêndio/ vogar em incêndios como em oceanos/ ceifar oceanos como searas/ repicar searas como sinos/ esquartejar sinos como cordeiros (…) tripular crepúsculos como navios/ descalçar um navio como um rei/ pendurar reis como auroras/ crucificar auroras como profetas” (Huidobro)… Não faz muito tempo, os homens ainda falavam entre eles uma linguagem de incêndios, tinham um vigor que se alimentava na natureza de forma a transcendê-la. Hoje, somos incapazes de colher uvas nos espinheiros ou figos nos cardos. Mesmo a literatura deixou de se exercer em flagrante delito. A velocidade substitui o tempo enquanto ordem ou efeito que impedia tudo de suceder em simultâneo e, desse modo, encadear algum tipo de nexo narrativo. Somos projectados na inconsciência pelo ruído de todos esses “acontecimentos que não têm o seu próprio lugar no tempo, os acontecimentos que chegaram tarde demais, quando todo o tempo já foi distribuído, dividido, desmontado, e que ficaram em suspenso, não alinhados, flutuando no ar, sem lar, errantes” (Bruno Schulz). Hoje a própria espécie humana perdeu a ligação com a realidade, e deriva em suspenso, impondo as suas ilusões como uma doença que procura paralisar todos os ciclos.

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